segunda-feira, 4 de maio de 2009

FAMILIAS E CONTEMPORANEIDADE

José Outeiral
Membro Titular e Didata da SPP e Menbro Convidado da SBPRJ


Sumário
O autor realiza um recorrido sobre as questões familiares, nos aspectos culturais e psíquicos, considerando as transformações que atingem as famílias contemporâneas.




Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos e resíduos.
Deleuze

Uma breve contextualização inicial

Os textos onde Sigmund Freud aborda as questões relacionadas à cultura, especialmente aqueles escritos após a década de vinte, nos revelam uma preocupação crescente com os grupos, com a família e com a cultura. Ao definir em Mais além do princípio do prazer, por exemplo, a função da mãe como “escudo protetor” ele nos dá um dos inúmeros exemplos encontrados em sua obra da importância daquilo que Donald Winnicott conceituará como “ambiente facilitador”, a família e a sociedade.

É evidente que a psicanálise, centrada especialmente no complexo de Édipo e pelos acontecimentos pré-edípicos, é perpassada pelos acontecimentos emocionais, resultado da interação entre a realidade e a fantasia, ocorrida no âmbito do grupo familiar. Por outro lado, é oportuno não esquecer, como está escrito em um pé de página do Caso Dora, que Freud nunca abriu mão integralmente do trauma da sedução; o conceito de fantasia, que se seguiu a teoria do trauma da sedução não é incompatível com acontecimentos reais. A percepção da realidade, como sabemos, é, então, influenciada pelos avatares do desenvolvimento e dos processos maturacionais – a neurose infantil, por exemplo – ocasionando contatos tanto com objetos subjetivamente concebidos como com objetos objetivamente percebidos e propiciando um espaço de transicionalidade. Espaço este onde acontecem os objetos e fenômenos transicionais, terceiro espaço, espaço paradoxal, que não pertence nem ao bebê nem a mãe e, ao mesmo tempo, a ambos. Espaço que propicia o ingresso no Real. Espaço de repouso, de amorfia, do gesto espontâneo, da criatividade e da criação da cultura (Outeiral, 2003).

Sigmund Freud era um homem erudito, conhecedor da cultura, que viveu dentro de um contexto familiar específico: uma família judia pequeno-burguesa, na Viena do fin-du-siècle XIX e nas primeiras décadas do século XX. Seu olhar, como não poderia ser diferente, tem este viés. Seus biógrafos escreveram detalhadamente sobre este tema e é desnecessário que eu me estenda além desta breve observação.

É no conceito de desamparo, que considero de extrema significação na obra de Freud, tanto do ponto de vista teórico como clínico, que encontramos outra amarração que inevitavelmente nos leva a importância da família em seu pensamento. Donald Winnicott, freudianamente, escreveu que “não existe esta coisa de um bebê sem uma mãe”; eu acrescento, não sendo nada original, que não existe mãe sem pai e que mesmo a ausência deste é, paradoxalmente, uma presença marcante. Sigo a linha de pensamento de Donald Winnicott que ao escrever que não existe bebê sem mãe está também registrando que não existe mãe, nem bebê, sem pai, sem família. Até agora é provável que o leitor não tenha encontrado nenhuma novidade na leitura deste breve ensaio: peço um pouco mais de paciência. O que quero trazer é que Sigmund Freud deu, sim, importância não só ao mundo interno e à fantasia, mas reconheceu também a existência da mãe e do pai reais. Com a série complementar (1916) ele nos permite mais uma articulação do que escrevo. Na conhecida boutade de Donald Winnicott (o mais freudiano dos psicanalistas nascidos na Inglaterra, provoco), quando ele lembrou aos membros da Sociedade Britânica de Psicanálise que, a despeito das discussões que estavam sendo travadas, em torno das controvérsias Klein-Ana Freud, Londres estava sendo bombardeada naquele momento pelos nazistas. Ele registrou a importância do Real, reafirmando, assim, como sempre o fez, sua filiação freudiana. A família é Real: sua percepção, entretanto, nem sempre o é.

Pelo que escrevo quero gizar o óbvio: o ser humano depende em seu desamparo, físico e psíquico, aspectos que ele irá progressivamente integrando através da personalização, de um “ambiente facilitador” (“mãe suficientemente boa” ou “mãe devotada comum”) que se revele “suficientemente bom”. Vou poupar o leitor de uma “revisão da literatura” e falar de minha experiência clínica. Creio que agora posso seguir adiante, após ter trazido estas considerações.

A clínica do cotidiano

A clínica do cotidiano nos permite constatar que, efetivamente, uma série de paradigmas e valores de nossa Sociedade, circunstâncias que se mantiveram relativamente estáveis no decurso de várias gerações que nos antecederam, estão sendo contestados, modificados e, mesmo, substituídos por outros muito diferentes. Esta observação pode ser descrita como o “advento” da condição pós-moderna ( ou “...a lógica cultural do capitalismo tardio”, como define F. Jamelson), ou seja, a etapa intermediária entre o “esgotamento” da Modernidade e o período que a irá suceder e que não sabemos, exatamente, como será. Prefiro, entretanto, usar as expressões alta modernidade ou cultura contemporânea. Peço ao leitor que considere que as condições de nosso país dificultam a utilização da expressão condição pós-moderna, pois a Modernidade nem bem se instalou entre nós.

Na Sociedade humana, desde os seus primórdios, sempre foi assim: durante certo espaço de tempo, às vezes, abrangendo alguns séculos, uma série de elementos sociais, econômicos e culturais permanece aparentemente estável até que em um determinado momento, que poderá ocupar algumas gerações, ocorre uma “ruptura”, surgindo momentos de instabilidade, incertezas e mudanças bruscas, e após uma nova etapa se estabelece. Foi assim, por exemplo, ao final do Medievo, em torno dos séculos XV e XVI, quando a Modernidade começou a se estruturar.

Uma metáfora que costumo utilizar para dar maior nitidez ao que escrevo (valendo sempre lembrar, com W. Goethe, que “...a nitidez é uma conveniente distribuição de luz e sombra...”, ou seja, que não pretendo “explicar tudo” deixando ao leitor parte do trabalho) é o movimento das placas tectônicas. Estas placas, que formam a superfície terrestre, durante longos espaços de tempo, aparentemente (pois, na verdade, estão em constante movimento e gerando quantidades fantásticas de energia), parecem estar em repouso, até que o acúmulo de energia produz movimentos perceptíveis que denominamos terremotos e novas aparentes acomodações surgem então. Não esqueçamos que nosso continente era unido à África e era denominado de Pangéia. Estas novas acomodações darão lugar a novos terremotos e assim sucessivamente em um movimento contínuo. Com o desenvolvimento da sociedade humana acontece algo parecido: a Idade Média, como comentei antes, foi “estável” durante alguns séculos, ocorreu então um “terremoto” que perdurou algumas gerações, e se estabeleceu, então, a Idade Moderna.

É possível, pensam alguns autores, que estejamos vivendo um “terremoto” –a condição pós-moderna-, período de transição entre a Modernidade e o que a irá suceder...logo surge a pergunta sobre quais fatores provocam estas “mudanças”. Voltemos, por breves instantes e com uma lente de maior aumento, até à Idade Média, caracterizada, especialmente, pela estrutura feudal e por uma visão de mundo teológica. O desenvolvimento do comércio trazido pelas grandes navegações, o avanço do conhecimento científico sobre a interpretação teológica do mundo, a razão contra o misticismo, o desenvolvimento das cidades e do comércio (surgem os “burgos”, as cidades, muitas vezes cidades-estados, e os burgueses, uma nova classe social) provocam rupturas e mudanças. A invenção da imprensa (a descoberta de J. Gutemberg [1397-1468]) colocou o conhecimento obtido por meio de livros e da Bíblia – a primeira Bíblia impressa surgiu em 1454- ao alcance de muitos. O que antes era restrito ao trabalho dos monges copistas e que permanecia na posse da Igreja, originando transformações que o livro de Humberto Eco, O nome da rosa, relata de forma magnífica. São inúmeras as novas condições e na esteira deste processo surge a Reforma Protestante; enfim, um sem-número de fatores sociais, econômicos e culturais se modificaram. Houve um esvaziamento do Medievo nos séculos XV, XVI e XVII e o nascimento e o desenvolvimento da Modernidade. A Modernidade que é representada, por exemplo, pelo ideário da Revolução Francesa de 1779 –liberdade, igualdade e fraternidade- propiciou o surgimento da Revolução Industrial, a noção de Estado nacional, o respeito pelas leis constitucionais e pelo cidadão, uma ênfase sobre a razão e no conhecimento científico, o estabelecimento da “família burguesa”, configurando uma visão de mundo considerada como o Iluminismo, período das luzes, em oposição a chamada idade das trevas, a Idade Média.

Neste período um novo conceito de família a família burguesa, surge, como descreve Ph. Áries. A própria arquitetura doméstica se modifica, aparecendo a idéia de privacidade e, por exemplo, os quartos de dormir, o que não existia, praticamente, até então; todos costumavam dormir em uma mesma peça, adultos, crianças e visitantes ocasionais, próximos ao local das refeições, espaço aquecido. A privacidade está ligada a crescente noção de indivíduo; cada pessoa buscando, agora, uma individualidade, ser “diferente”, único: um sujeito.

O crescimento das cidades criou também os sobrenomes, os nomes-de-família, pois se nas pequenas aldeias todos se conheciam e a genealogia era sabida pela comunidade, na cidade era necessário nomear a família para dar identidade: o pescador passou a se chamar Johan Fischerman... ou o emigrante português, vindo ao Brasil no século XVIII, para lutar nas guerras cisplatinas, chamado Manuel e habitante da pequena Vila dos Outeiros, região de outeiros –morros- ao norte de Portugal e na região da Galícia, passou a ser chamado de Manuel Outeiral... O “al” acrescido pela influência moura de quase 900 anos de domínio na Ibéria. Uma consideração interessante é que quando o camponês começou a migrar para a cidade e necessitou de um outro nome, a expressão inglesa arcaica para tanto era “um eike name” (“um outro nome”), palavras que consignavam uma identidade. Quinhentos anos depois esta expressão deu origem a uma outra, “nickname”, apelido, que nos remete ao falso, ao fake do cyberespaço pós-moderno, algo que promove a descentralização e a descontextualização do sujeito e de sua identidade . Como sempre as palavras são reveladoras.

Esta passagem não se realizou sem “traumas”, mas sim através de “turbulências”, às vezes fraturas bruscas e outras numa suave découpage, que envolveu, muitas vezes, a violência: Nicolau Copérnico e Galileu Galilei são exemplos destes tempos de mudança. As novas idéias colocavam em risco os paradigmas e valores da época e muitos foram punidos, na verdade, na busca do Poder em banir as novas idéias laicas e o espírito científico que elas representavam. O conceito de W. Bion sobre mudança catastrófica nos auxilia a compreender, desde o social ao individual, o significado destas transformações.

Embora utilize, obviamente referenciais teóricos, quero dirigir minhas idéias e minha escrita pela clínica e pelo cotidiano de minha prática, que representa mais de três décadas de atividades como médico, psiquiatra e psicanalista com crianças, adolescentes e suas famílias. Não tenho o intento de estar construindo um paper ou ser um scholar, mas sim o de estar buscando interlocutores para discutir as experiências e buscar a síntese de um conjunto de idéias que possa ser capaz de realizar hoje.

Trago, agora, ao leitor algumas considerações sobre as transformações sofridas pelas famílias, depois de muitas gerações com uma aparente estabilidade.

O leitor deve considerar que neste recorrido histórico que faço, perpassado pela busca de compreender as estruturas familiares, busco, agora, falar das famílias contemporâneas.

Nos últimos cem anos a humanidade acumulou uma quantidade tal de novos conhecimentos como, talvez, nunca tenha acontecido antes. Foi possível filmar o primeiro vôo de um aparelho mais pesado que o ar, com Santos Dumont e o XIV Bis, em Bagatelle, e antes de completar um século filmar o homem pisando na lua. As possibilidades de comunicação tornaram-se fantásticas e a cibernética nos deu novas dimensões nos relacionamentos e na busca de informações. Os teóricos que estudam a pós-modernidade nos falam do apagamento da noção de sujeito, substituído pela pessoa-coisa, um gadget. Noção de sujeito, sujeito psíquico, tão cara à Modernidade. Estes autores comentam sobre o final da história. Referem sobre a fragmentação, da cultura da banalização e do descartável. Agora temos um hiper-corpo, constituído por próteses eletrônicas, que nos ligam, nos mantém on-line, em um mundo globalizado. Globalização que globaliza também o desejo. A cultura da banalização e do descartável é evidente. O tempo fast nos apresenta uma geração delivery. Enfim, não pretendo sobrecarregar o leitor com o já conhecido, mas colocar os fatos que nos auxiliarão a pensar melhor as condições do sujeito contemporâneo e das estruturas familiares que se constituem o seu “ambiente facilitador”, como escreveu Donald Winnicott.

Vejamos, então.

Na década de setenta (século XX) as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem da família patriarcal para a família nuclear. Devemos considerar nestas mudanças múltiplos fatores, dos quais quero referir dois. Primeiro o crescimento rápido e desordenado dos centros urbanos à custa de um intenso fluxo migratório vindo das zonas rurais, na década de 1940-50. O Censo Demográfico do IBGE, nesta ocasião, revelava que aproximadamente 30% da população vivia nas grandes cidades, enquanto 70% da população habitava pequenas cidades e no campo, situação que se inverte na passagem para o século XXI, quando 80% da população está nos grandes centros urbanos e apenas 20% nas zonas rurais e pequenas cidades. Em segundo lugar o ingresso da mulher no mercado de trabalho. A família patriarcal constituída por grupos familiares reunindo diversos graus de parentesco (avós, tios, primos, etc.), habitando espaços próximos e, muitas vezes, participantes de uma mesma atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de proteção, no caso de dificuldades por parte dos pais, assim como um maior número de modelos para identificação (mais uniformes, coerentes e estáveis e pertencentes a uma mesma cultura). Este grupo familiar é próprio das zonas rurais e dos pequenos vilarejos do interior. Com a rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a família nuclear, constituída por um casal (ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias segundo o IBGE) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos, desenraizados de suas culturas. Esta multidão, paradoxalmente, dá ao indivíduo desamparo e isolamento. Nas famílias mais pobres é geralmente a avó que se faz a cargo das crianças, estando os pais, ainda adolescentes, na vida das ruas. É exatamente nesta década que crianças e adolescentes passam a chamar de “tios” os adultos em geral e os professores em particular. Estes novos “tios” penso que representam uma tentativa de reconstituição de laços de parentesco, revelando uma esperança que permite sustentar, pelos menos por algum tempo, o desamparo. Crianças, adolescentes e seus pais em busca de uma família “perdida”.

Na década de oitenta as questões diziam respeito às novas configurações familiares: famílias reconstituídas, com filhos de casamentos anteriores e do novo casamento, tendo este fato social o reconhecimento com a lei do divórcio. Certamente em uma sala de aula, nas décadas anteriores, poucas crianças tinham os pais separados, enquanto hoje este é um fato comum. As questões relacionadas as perdas de vínculos passam a se tornar muito importantes. O conceito de tendência anti-social, de Donald Winnicott, resultado da deprivação (perda de um cuidado que foi experimentado) adquire muita atualidade. A “delinqüência” (do latim de-linkare, perda de vínculo), tendência anti-social que não encontrou atendimento, ocupa vários espaços sociais.

Nos últimos anos surge, então, uma série de diferentes configurações familiares. Cada criança, em uma sala de aula, traz uma experiência cultural familiar própria. O desenvolvimento tecnológico aporta muitas possibilidades para a concepção de um bebê, abrindo, por exemplo, a porta para as questões derivadas das famílias homoparentais. A mulher obtém, por desejo e/ou necessidade, uma definitiva inserção no mercado de trabalho e o tempo de convivência com os filhos se torna menor do que nas gerações anteriores. Berçários, creches e escolas infantis se tornam necessárias para pais que “terceirizam”, cada vez mais, os cuidados parentais. A função paterna é cada vez mais inexistente nos grandes centros urbanos.

Os Indicadores Sociais do ultimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística nos revelam que a primeira causa de morte entre 14 e 25 anos, em nosso país, se deve a homicídios, a segunda causa a acidentes e a terceira causa a suicídios e só depois temos as doenças orgânicas. Este período de desamparo e de banalização da violência em nossa sociedade revela uma encruzilhada entre civilização e barbárie que atinge de cheio as estruturas familiares. Muitos problemas de desenvolvimento e de sofrimento emocional passam por estas condições: as “patologias do vazio”, as “estruturas narcísicas”, os borderlines, o sentimento de “não-ser” e de “invisibilidade”, as adições a substâncias psicoativas e as adições a pessoas, entre outras condições, permitem pensarmos em “patologias da contemporaneidade”.

As identificações muitas vezes patológicas (nem todas as identificações, como sabemos, são estruturantes) atingem crianças e adolescentes. Estes últimos, buscando seu processo identificatório, como é natural, na sociedade, mais do que na própria família, encontram representantes sociais que não oferecem valores éticos e morais adequados. As desidentificações de identificações patológicas, parte do processo adolescente, não se dão adequadamente. Há um predomínio, então, de um ego ideal sobre o ideal de ego. O primeiro mais ligado ao narcisismo, ao pensamento concreto e com uma capacidade de simbolização incipiente e não reconhecendo adequadamente o “outro”, predomina sobre o segundo, em geral, menos narcísico, reconhecendo e respeitando o “outro” e com predomínio do pensamento abstrato e da capacidade de simbolizar. Em outras situações encontramos um ideal de ego punitivo, sádico e destrutivo como soe acontecer em muitas situações emocionais adversas. É possível se dizer, parodiando Freud que onde “existe ego ideal deveria existir ideal de ego”. O desamparo nas etapas iniciais do desenvolvimento e dos processos de maturação, a falência da função paterna e as identificações patológicas respondem, dentre outros fatores, por estas condições. Há dificuldades no estabelecimento de limites, entendidos aqui como holding ou função continente. Holding, não esqueçamos, é espaço e limite, elemento feminino puro, “ser”, e também, necessariamente, elemento masculino puro, “fazer”. Sem estes elementos a capacidade de pensar está prejudicada e teremos a descarga de impulsos diretamente na ação, sem intermediação do pensamento: comunicação pela ação, agir para sentir-se vivo. Em lugar do “penso logo existo” de Descartes temos o “ajo logo existo” ou “mato logo existo”. Estes acontecimentos atingem os jovens de diferentes classes sociais.

O leitor, talvez, pensará que estou muito trágico, a despeito dos dados de morte de jovens pelo IBGE. Mas sabe o leitor de que morrem meninos entre cinco e quinze anos na cidade de São Paulo? Homicídio é a causa da morte deles. Não esqueçam que a história do homem avança numa circular ascendente onde se alternam civilização e barbárie.

Quero agora, dando continuidade as idéias sobre as famílias contemporâneas, de nossos centros urbanos, escrever sobre algumas outras questões relacionadas às crianças e aos adolescentes. A organização Mundial da Saúde reconhece a adolescência como o período compreendido entre dez e vinte anos e o Estatuto da Criança e do Adolescente como o período compreendido entre doze e dezoito anos. Pois nas famílias contemporâneas é possível reconhecer que a adolescência inicia, muitas vezes, antes dos dez anos e se prolonga muito além dos vinte anos, em outras tantas.

Não sou um “filósofo de poltrona”, como escreve Donald Winnicott. Ele nos adverte, em O brincar e a realidade, contra esta postura que evitando o empirismo se lança na teorização distanciada da clínica. Vou escrever sobre o que experiencio, desde que atendi, em 1971, meus primeiros três pacientes adolescentes, sob a supervisão de Luiz Carlos Osório, Eduardo Kalina e Luis Prego-Silva. Como nosso tema é família é por aí que convido o leitor a uma interlocução.

Na década de setenta, generalizando, a criança se tornava púbere (fenômeno biológico) e, então, adolescia (acontecimentos psico-sociais). Na década de oitenta a puberdade e adolescência eram observadas concomitantemente. Nos últimos anos observo uma conduta adolescente (interesse pela sexualidade genital, contestação das normas e combinações da família e da escola, preocupação exagerada pelo corpo, etc.) em indivíduos ainda não púberes, antes dos dez anos, com sete ou oito anos. Penso, inclusive, e não vejo originalidade nisto, que o conceito de infância, como período de desenvolvimento com direitos e necessidades específicas, estabelecido pelo Iluminismo, sofre o risco de profundas transformações. Alguns autores refém sobre a “desinvenção da infância” inclusive, sobre a “desinvenção do brincar”. Temas a serem desenvolvidos em um outro momento. Há algumas décadas se transitava da infância ao mundo adulto através de alguns rituais de iniciação e em um curto espaço de tempo. Com o desenvolver da adolescência, a partir da metade do século passado, com esta invadindo a infância e o mundo adulto, temos a adolescência não só como período de desenvolvimento, mas, também, como um estilo de vida nas sociedades urbanas contemporâneas. É a “adultescência”, contração de adulto e adolescente, palavra que consta no Dicionário Oxford. Temos também os kidadults, adultos que abandonam sua posição e passam a agir de uma forma infantil. Assim, poderemos considerar o risco, fazendo uma brincadeira, de que os adultos correm o risco de se transformarem em uma espécie em extinção, assim como o tamanduá-bandeira e o boto-rosa... Observo, por exemplo, e não é raro, nas escolas, o “desaparecimento” dos adultos A falência das funções de adulto origina, é óbvio, severos problemas ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e profundas transformações nos papéis familiares.

O período de latência, por exemplo, sofre com estas novas condições. È sobre ele que a adolescência lança sua “turbulência”, antes que exista uma mente capaz de lidar com as questões desta etapa. Abortada ou invadida a latência deixa de cumprir suas tarefas tão essenciais ao desenvolvimento.

Necessitamos então falar em famílias e sustentar, frequentemente, um não saber sobre elas.

Arremate

Minha intenção é convidar o leitor a realizar algumas reflexões sobre as diferentes configurações e possibilidades que envolvem as questões familiares. Não busco a linearidade ou a estrutura acadêmica. Escrevo como se estivesse falando. Espero que o leitor, durante a leitura, construa seu próprio texto; que traga suas idéias e expresse suas discordâncias. O que escrevi deverá ficar numa curva do caminho.

Bibliografia
Outeiral, J. Adolescer. Revinter. Rio de Janeiro. 2003

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