sábado, 24 de janeiro de 2009

Somatizar

O CORPO EXISTE ?


A primeira coisa que constitui o ser atual da alma humana não é senão a idéia de uma coisa singular existente em ato. II, P9
Tudo o que acontece no objeto da idéia que constitui a alma humana deve ser percebido pela alma humana ; em outras palavras, a idéia dessa coisa existirá necessariamente na alma. Se o objeto da idéia que constitui a alma humana é um corpo, nada poderá ocorrer com esse corpo que não seja percebido pela alma. II, P12
Baruch Spinosa, Livro II da Ética

Não é à consciência que o sujeito está condenado, mas ao corpo.
J, Lacan



É lógico que como corpo físico, que ocupa um lugar no espaço e é atraído pela força de gravidade, o corpo existe. O corpo sob o ponto de vista biológico, que apresenta as características gerais dos seres vivos, tanto animais como vegetais, também existe.

Maimônides, o médico e filósofo judeu do século XII, poderá nos auxiliar com seus comentários. Ele escreveu:

Seria errado admitir que a pessoa teria estes órgãos em vão. Deus nos livre que Ele tenha criado alguma coisa sem propósito. Porque se uma pessoa tivesse uma boca, um estômago, um fígado e órgãos sexuais, mas não comesse, não bebesse e não procriasse, então teria sido sua existência absolutamente vã.



Feito à imagem e semelhança de Deus, o corpo humano é postulado desde o início do texto bíblico como um território do sagrado ( Gn 1,26 ). Não se trata apenas de um monte de órgãos, vísceras, fluidos e funções. Na língua hebraica todas as partes do corpo humano são hipostasiadas e dotadas de atributos psíquicos e espirituais. Cada parte do corpo humano leva em si mesma uma consciência do verdadeiro Eu e de sua unidade. É a hipostasis grega, a Pessoa, única e irrepetível, ícone divino, criado ao son do Verbo e na ressonância de seu Nome. ( Emmanuel Levinas, L´hypostase Le temps et láutre, 1979 ; Miranda O corpo. Território do sagrado ) A consciência corporal é hipóstase quando e sempre o existente coloca-se em relação com seu existir.


A pergunta que dá título ao texto é, evidentemente, uma provocação e um convite para uma reflexão sobre a existência do corpo da pessoa total, ou whole person como conceituou Donald Winnicott ( DWW ). Talvez possamos concordar, desde logo, de que este corpo da pessoa total existe sim mas, paradoxalmente, também deixa de existir – como entidade isolada – para fazer parte de uma unidade, uma integração, ou realização, e que em determinadas situações adversas esta trama psicossomática poderá não se constituir e/ou deixar de existir. Surgem, então, diversas questões: vejamos algumas delas.

DWW

A pessoa total é uma realização, um going-on-being, ligada ao desenvolvimento do self, dependente da constituição e do ambiente, e resulta da integração do psique-soma.

É necessário retomar alguns conceitos que DWW nos oferece no clássico trabalho A mente e sua relação com o psique-soma ( 1949 ).

1. O conceito de psique

... a palavra psique significa a elaboração imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vivência física ... o indivíduo, no entanto, não a sente a psique como estando localizada no cérebro ou em qualquer outro lugar

2. O conceito de mente

... o esquema corporal, com seus aspectos temporal e espacial, fornece uma exposição valiosa do diagrama que o indivíduo tem de si mesmo e acredito que dento dele não haja um lugar óbvio para a mente ... a mente existe como uma função do psique soma...

3. Alguns comentários sobre o conceito de psique-soma

Penso que podemos introduzir o conceito de psique-soma referindo um trecho da autobiografia de DWW, que ele intitulou Not less everyting, a partir de um poema de T. S. Eliot, onde ele descreve imaginativamente sua morte

Estive morto.
Não era particularmente agradável e me pareceu que levou um bom tempo ( porém apenas um momento na eternidade ). Chegado o tempo eu sabia tudo sobre um pulmão cheio de água. Meu coração não conseguiu fazer seu trabalho, pois o sangue já não podia circular livremente pelos alvéolos. Havia falta de oxigênio e asfixia. Não havia porque ficar revolvendo a terra, como dizia nosso velho jardineiro. Minha vida foi longa. Vejamos um pouco do que aconteceu quando morri ? Meu pedido havia sido ouvido ( Meu Deus, faz com que eu viva o momento de minha morte ! ).

Clare Winnicott, sua espôsa, a partir deste trecho, comenta que se pode Ter uma idéia da capacidade de DWW para compor, brincando com a realidade de dentro e de fora, criando um espaço transicional, de modo a permitir ao indivíduo suportar a realidade da vida, evitando a negação e podendo realizar tão plenamente quanto possível a experiência da vida ( o existir e o ser, o verdadeiro self, o gesto espontâneo e a criatividade ) . Realizar este viver criativo que pode ser tanto o nascimento de um bebê como a morte que colhe um velho. A integração do psique-soma busca permitir esta experiência do viver criativo.

O conceito de personalização é utilizado por DWW para descrever a trama psicossomática, ou seja, “ a psique residindo no soma “.

Em um trabalho intitulado The theory of the parent-infant relationship ( 1960 ), DWW escreve:

A base para este residir é a vinculação de uma experiência motora, sensorial e funcional, com o novo estado de “ ser uma pessoa “ para o bebê. Como um desenvolvimento ulterior surge o que poderia ser chamado uma membrana limitadora, que, em certo grau ( na saúde ) pode ser equiparada à superfície da pele e assume uma posição entre o self e o não-self do bebê. Dessa forma o bebê passa a Ter um dentro e um forma o significado se apega a função de incorporar e de expelir; além do mais, gradualmente se torna significativo postular uma realidade psíquica pessoal, ou interna, para o bebê.


Madeleine Davis e Davis Walbridge, em seu livro Boundary and space: na introduction to the work of. D. W. Winnicott ( 1981 ) escrevem que a maioria das pessoas aceita a trama psicossomática sem discussão, mas DWW a percebeu como uma realização ( being-a-person ) : ela representa um desenvolvimento a partir das “ etapas iniciais nas quais a psique imatura ( embora fundamentada no funcionamento somático ) ainda não está intimamente vinculada ao corpo e à vida do corpo “. Devemos considerar que mesmo que depois do estabelecimento da trama psicossomática, ou da personalização, pode haver períodos nos quais a psique perde contato com o corpo.

DWW ( The first year of life: modern views on the emotional development, 1958 ) escreve :

Pode haver fases nas quais não é fácil para o bebê retornar ao corpo, como, por exemplo, ao acordar de um sono profundo. As mães sabem disso e acordam gradualmente o bebê antes de levantá-lo para não causar os berros de terror ou pânico que podem ser motivados por uma mudança de posição do corpo em um momento em que a psique está ausente dele. Clinicamente associada a esta ausência de psique, pode haver palidez, ocasiões em que o bebê está suando e talvez esteja muito frio, e também podem ocorrer vômitos. Nesse momento a mãe pode pensar que seu bebê está morrendo, mas, quando o médico chega, houve um retorno à saúde normal e ele é incapaz de entender porque a mãe ficou assustada.

A personalização ou a organização da trama psicossomática, não significa apenas que a psique está colocada no corpo ou na cabeça, mas também que a medida que, finalmente, o controle se amplia, o corpo todo se torna residência do self.

Em Primitive emotional development ( 1945 ), DWW descrevendo a questão referida antes ( da localização do self no corpo ) nos relata a situação de uma paciente psicótica que descobriu na análise que vivia dentro de sua cabeça a maior parte do tempo, atrás dos olhos. Via através dos olhos como se estivesse vendo através de panelas e não sabendo, portanto, o que faziam seus pés, apresentando como consequência a tendência a cair em buracos e tropeçar nas coisas. Não tinha “ olhos nos pés “. Não sentia a própria personalidade como localizada no corpo, que era uma máquina complexa que ela tinha de dirigir com habilidades e cuidados conscientes.

A situação descrita por DWW, se pensarmos em termos psicanalíticos e seguindo ao que S. Freud escreveu em Neurose e psicose , não nos será, talvez, totalmente estranha: alguém terá sonhado que uma parte de si mesmo sai do corpo, flutua no espaço e é capaz de observar o corpo deitado, inerte. Os mecanismos primitivos do sonho nos fazem experimentar a dissociação psique-soma ... Em situações extremas, como em alguns adolescentes regressivos e com estados de mente primtivos, a exposição do corpo ao perigo e a morte não significa, necessariamente, a morte “ da alma “. O fato de que acidentes e suicídios estão em segundo e terceiro lugar nas causas de morte de adolescentes pode se dever, entre muitos outros fatores a este aspecto.

É importante, agora, estabelecer a articulação entre os conceitos de psicossomática e de psique-soma, termos que, embora estejam dispersos em inúmeros trabalhos de DWW, estão mais desenvolvidos em dois textos básicos: The mind and its relation with psique-soma ( 1949 ) e Psycho-somatic illnes in its positive and negative aspects .

Neste último trabalho DWW considera que este estado patológico é uma organização de defesas com determinantes muito poderosas e que por este motivo é muito comum que médicos “ com boa intenção e boa formação e, inclusive, com equipamentos muito modernos “, fracassem em curar seus pacientes psicossomáticos. Uma forma médica de reagir a este fracasso é realizar um estudo teórico ( não clínico ) do assunto.

DWW considera que a dissociação é um mecanismo de defesa básico e intenso nestes pacientes e lembra, brincando, que os terapeutas da psicossomática se orgulham de sua capacidade de montar dois cavalos de uma vez, com um pé em cada uma das selas e com as rédeas de ambos em suas mãos. Terminam, entretanto, após algum tempo, sem saber em que estão pisando e com que rédeas estão nas mãos e acabam por cair dos cavalos. Neste mesmo trabalho ele retoma a questão da personalização e enfatiza o elemento positivo da defesa psicossomática ( que ele observa também na tendência anti-social ).

DWW comenta:

A enfermidade psicossomática, da mesma forma que a tendência anti-social, tem seu lado positivo enquanto o paciente está em contato com a possibilidade de uma unidade psicossomática ( ou personalização ) e de dependência, ainda quando sua condição clínica ilustre ativamente o contrário mediante a cisão, dissociações várias, e através de uma tentativa persistente de dividir e separar a atenção médica, e por meio de um onipotente cuidado de si mesmo .

Em relação ao psique-soma ( 1949 ) DWW comenta que o esquema corporal, com seus aspectos temporal e espacial, fornece uma exposição valiosa do diagrama que o indivíduo tem de si mesmo, mas ele também acredita que no corpo ( ou no esquema corporal ) não há um lugar próprio para a mente . Para ele a mente não existe como uma entidade, mas sim como uma função do psique-soma.

Quando o psique-soma atravessa satisfatoriamente os estágios mais antigos do desenvolvimento, a mente não existe como uma entidade no esquema de coisas deste indivíduo, não sendo mais que um caso especial do funcionamento do psique-soma.

Durante o desenvolvimento normal, ou nos processos patológicos, a mente pode funcionar como uma falsa entidade e com uma falsa localização. Para DWW o uso de palavras como físico e mental nos causa vários problemas, mas não temos uma palavra adequada para nos referirmos às doenças psicossomáticas . Na verdade temos um corpo e não devemos distinguir entre psique e soma, exceto de acordo com a direção em que se está se observando. Para DWW, psique é, vale retomar, a elaboração imaginativa de partes,sentimentos e funções somáticas.

A mente se constitui, desta forma, uma função do psique-soma. A teoria da mente formulada por DWW se baseia no trabalho analítico com pacientes que regridem a um nível extremamente primitivo na transferência.

DWW diz que a saúde leva , nos estágios emocionais inciais, a uma continuidade de existência, O psique-soma se desenvolve a partir de uma linha de desenvolvimento, contanto que a continuidade de existência não seja perturbada, o que cria a necessidade de um aambiente facilitador ( uma mãe suficientemente boa, uma mãe devotada comum ). Este meio ambiente facilitador se adapta, tanto quanto possível, às necessidades do psique-soma recém formado. Assim, de acordo com esta maneira de pensar, no desenvolvimento de todo o indivíduo, a mente tem uma raiz na necessidade que o indivíduo tem, e que se encontra no cerne de seu self, de um ambiente “ perfeito “.


Bilbiografia

Davis, M. & Wallbridge, D. Limite e espaço. Imago. Rio de Janeiro. 1982
Winnicott, D. Explorações psianalíticas. Artes Médicas. Porto Alegre. 1989
Winnicott, D. O processo maturacional e o desenvolvimento do indivíduo. Artes Médicas. Porto Alegre. 1965
Winnicott. A natureza humana. Imago. Rio de Janeiro. 1990
Winnicott, D. The privacy of the self. IUP. N.Y. 1974

aNota .Em uma discussão realizada em 17 de março de 1943 sobre o trabalho de Susan Isaacs, “ A Natureza e a função da fantasia, durante as controvérsias na Sociedade Britânica de Psicanálise, E. Glover faz um comentário que me parece interessante.

(... ) penso que boa parte da discussão da relação entre a realidade psíquica e a externa deve estar ligada a algumas dificuldades inerentes ao sistema kleiniano. A afirmação clara de Freud de que os derivados pulsionais são representacionais e afetivos inclui especificamente a percepção de expressões sensoriais ( somáticas ) de afeto, sejam estas expressões derivadas de afetos primários ou de afetos “ reativos “ secundários. Como disse antes, o mundo externo, por exemplo, as montanhas do Himalaia, no sentido psíquico, não é algo espacialmente fora da mente. É uma percepção cujos traços mnêmicos se encontram na psiquê. Mas nem as montanhas do Himalaia, nem a percepção psíquica delas, nem a catexia do sistema de traços mnêmicos do Himalaia constituem uma fantasia.

( Este comentário está inserido entre uma ampla discussão que antecedeu e sucedeu a intervenção de E. Glover. ).

J.Outeriral

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